domingo, 28 de junho de 2015

A abordagem híbrida da dimensão normativa do conhecimento

A análise tradicional do conhecimento proposicional (i.e., do saber-que) diz que esse tipo de conhecimento é completamente entendido a partir de três condições que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para dar lugar ao conhecimento: a condição atitudinal do crer-que, a condição semântica da verdade e a condição epistêmica da justificação epistêmica. Em suma, para esta teoria 'tripartite' do conhecimento, conhecimento é crença verdadeira justificada. Entretanto, desde Gettier (cf. Gettier 1963) os epistemólogos reconhecem que justificação epistêmica, verdade e crença não são, em conjunto, suficientes para dar lugar ao conhecimento. Casos tipo-Gettier, embora não questionem a necessidade individual de cada uma dessas condições, são uma família de célebres contraexemplos à suficiência conjuntiva das três condições estipuladas pela análise 'tripartite' do conhecimento proposicional. Neles, podemos observar que um sujeito forma uma crença verdadeira justificada, mas nós, intuitivamente, não atribuiríamos conhecimento ao sujeito em questão.

Uma pequena sondagem aos casos tipo-Gettier revela o que está em jogo em cada um deles: o sujeito forma uma crença verdadeira justificada, mas a verdade da crença é alcançada de maneira acidental ou, para usar um termo de agrado dos epistemólogos, a verdade da crença é alcançada por uma sorte epistêmica. Com efeito, a epistemologia contemporânea pós-Gettier, no que diz respeito à análise do conhecimento proposicional, é quase toda ela uma tentativa de acomodar intuições anti-sorte (cf. Pritchard 2005 para uma análise mais detalhada).

Eu acredito ter uma solução ao problema da natureza do conhecimento (e, por consequência, ao problema de Gettier). Ademais, eu acredito que minha proposta teórica é capaz de solucionar problemas tais como o problema do valor do conhecimento e até mesmo oferece uma resposta aos problemas céticos do mundo exterior e das outras pessoas, compatível com a resposta oferecida por G. E. Moore—para a qual muitos epistemólogos ainda torcem a boca.

Embora eu seja um entusiasta da epistemologia das virtudes, eu já não acredito que possamos entender a dimensão normativa do conhecimento somente em termos de excelências de nível pessoal. Eu tento entender a dimensão normativa do conhecimento em termos de padrões epistêmicos que incluiriam tanto qualidades do agente epistêmico quanto qualidades da comunidade epistêmica e dos artefatos epistêmicos. Ou seja, os padrões epistêmicos podem incluir tanto as habilidades cognitivas daquele que possui crenças candidatas a conhecimento quanto as qualidades dos informantes de uma comunidade epistêmica (testemunhas, jornalistas, especialistas etc.) e, também, o bom funcionamento dos artefatos epistêmicos operados pelo agente epistêmico (relógios, termômetros, calculadoras etc.).

Com relação ao debate entre internistas e externistas epistêmicos, a minha solução é mostrar como intuições confiabilistas são, na verdade, compatíveis com alguma forma de responsabilismo. Existem duas vertentes principais na epistemologia das virtudes: o confiabilismo das virtudes (de tendência externista) e o responsabilismo das virtudes (de tendência internista). No fundo, o que eu faço é tentar mostrar que não há inconsistência entre ambas as vertentes e que, ao compatibilizá-las, nós conseguimos superar o debate entre internistas e externistas. Isso não é uma novidade, para ser sincero. Ernest Sosa em Knowledge in Perspective e John Greco em Achieving Knowledge (e também em Putting Skeptics in their Place) já indicaram a viabilidade desse caminho ao satisfazerem duas supostas demandas da dimensão normativa do conhecimento: a justificação objetiva e a justificação subjetiva. A justificação subjetiva é especialmente importante, como Greco nota (cf. Greco 2010, Ch. 10, 5), para resolver um problema apontado por Laurence BonJour ao confiabilismo processual, mas não se trata de uma estratégia meramente ad hoc, como pode parecer à primeira vista. Voltemos, entretanto, ao debate entre internistas e externistas. Afinal, como compatibilizar intuições confiabilistas com alguma forma de responsabilismo? Sendo o confiabilismo e o responsabilismo relevantes para entender a dimensão normativa do conhecimento, e sendo que eu entendo essa dimensão em termos de padrões epistêmicos, minha ideia é a de que nós selecionamos e incorporamos esses padrões em nossas vidas intelectuais, em nossos artefatos epistêmicos e em nossas comunidades epistêmicas porque nós desejamos a verdade e porque eles são conducentes à verdade (e.g., nós desejamos que nossos relógios estejam funcionando bem porque desejamos adquirir crenças verdadeiras acerca do horário atual para não perder, suponha, uma entrevista de emprego). Entenda o desejo pela verdade, ou mesmo o amor pela verdade, como aquele sentimento intelectual que uma pessoa manifesta quando procede de maneira epistemicamente responsável, e entenda o fato de esses padrões epistêmicos serem conducentes à verdade como aquilo que torna esses padrões epistemicamente confiáveis. O resultado é uma proposta teórica que acomoda tanto o confiabilismo quanto o responsabilismo—ou, pelo menos, alguma forma de responsabilismo. Com efeito, pelo fato de desejarmos a verdade (não necessariamente como um fim em si mesmo, mas principalmente pelo seu valor instrumental) e pelo fato de esses padrões serem conducentes à verdade, selecionar e incorporar esses padrões é uma questão de inteligência, capacidade biopsíquica que nós exercitamos quando precisamos resolver nossos problemas. Isso nos permite compreender o processo de adoção das metodologias empíricas das ciências modernas em nossa comunidade científica. Em suma, as metodologias empíricas se mostraram conducentes à verdade e, pelo fato de desejarmos atingir a verdade, selecionar e incorporar tais metodologias foi uma questão de inteligência. Com efeito, nós somos responsáveis por selecionar e incorporar padrões que são confiáveis. Alternativamente, ao selecionar e incorporar padrões que são confiáveis, nós aperfeiçoamos nossa performance doxástica de uma maneira responsável.

Isso já nos faz ter uma ideia do que é estar em uma posição epistêmica positiva para reivindicar p, i.e., afirmar que p é o caso, seja "p" uma proposição, sentença ou enunciado qualquer. Em poucas palavras, estar em uma posição epistêmica positiva para reivindicar p é crer que p por meio dos padrões epistêmicos relevantes. É de bom senso pensar que alguns padrões epistêmicos são relevantes sob certas circunstâncias, enquanto outros não o são. Como Greco faz notar em Achieving Knowledge, a habilidade para discriminar visualmente o ouro de outros metais é relevante para procurar por ouro em um ambiente iluminado, mas irrelevante para procurar por ouro em um ambiente escuro. É plausível, portanto, dizer que os padrões epistêmicos são situacionalmente-responsivos, i.e., responsivos a situações específicas, sendo relevantes sob certas circunstâncias e irrelevantes sob outras. Eu creio que este fato nos habilita a oferecer uma resposta plausível ao problema do mundo exterior e ao problema das outras mentes com os quais os céticos gostam de cantar vitória. Fundamentalmente, os céticos acreditam que para que alguém esteja em uma posição epistêmica positiva para declarar que o mundo existe e que outras pessoas existem, esse alguém precisa ter uma prova da existência do mundo exterior e da existência de outras pessoas. Dadas as hipóteses céticas (cérebro numa cuba, gênio maligno, sonhos etc.), é impossível oferecer uma tal prova da existência do mundo exterior e da existência de outras pessoas porque não teríamos como saber se somos ou não cérebros numa cuba, ou se estamos sendo iludidos por um gênio maligno, ou se estamos ou não sonhando etc. A conclusão do cético é a de que nós não estabelecemos qualquer relação epistêmica com o mundo—nós não sabemos que o mundo existe, nem que outras pessoas existem e não estamos justificados a crer na existência do mundo exterior e de outras pessoas. A conclusão é incômoda e as premissas parecem muito convincentes quando apreciadas devidamente. Há, porém, um problema: os céticos exigem que, para que eu esteja justificado a crer na existência do mundo exterior e de outras pessoas, eu preciso de uma prova. Em outras palavras, eles exigem que nós sejamos capazes de oferecer um raciocínio capaz de concluir que o mundo existe e que outras pessoas, além de nós mesmos, também existam. Na presente perspectiva, porém, fazer tal exigência é supérfluo, pois os padrões epistêmicos relevantes para se estar em uma posição epistêmica positiva para acreditar que o mundo e que outras pessoas existem são, respectivamente, nosso aparato sensório-motor e o testemunho das outras pessoas. Poderia ser argumentado também—e eu considero essa tese bastante plausível—que o conhecimento de que outras pessoas existem se segue de nossa capacidade de se contagiar motora e emocionalmente com os outros—aquilo que nós apropriadamente chamaríamos de empatia. Com efeito, o raciocínio dedutivo não é um padrão epistêmico relevante para saber que o mundo e outras pessoas existem. O raciocínio dedutivo é um padrão epistêmico relevante para concluir verdades matemáticas, lógicas ou mesmo filosóficas e científicas, mas não para assegurar crenças banais como a de que o mundo e outras pessoas existem.

Como resultado, eu tenho aquilo que eu chamo pelo nome de abordagem híbrida do conhecimento e da dimensão normativa do conhecimento. Ela é 'híbrida' por uma série de razões, para ser exato: porque reconhece a circunstancialidade sob a qual certos padrões epistêmicos são relevantes ou irrelevantes; porque acomoda tanto intuições confiabilistas quanto alguma forma de responsabilismo; e porque os padrões epistêmicos incluem tanto qualidades do agente epistêmico quanto qualidades da comunidade epistêmica com quem o agente epistêmico interage ou dos artefatos epistêmicos operados pelo agente epistêmico. O que se segue dessa abordagem híbrida é, fundamentalmente, a tese de que saber que p é realizar uma performance doxástica bem-sucedida por meio dos padrões epistêmicos relevantes. Tal proposta evita casos tipo-Gettier. Em casos de conhecimento, a parte mais importante para explicar por que o agente epistêmico realiza uma performance doxástica bem-sucedida são os padrões epistêmicos relevantes. Em casos tipo-Gettier, a parte mais importante para explicar por que o agente epistêmico realiza uma performance doxástica bem-sucedida é a sorte epistêmica. O diagnóstico que a presente abordagem oferece de casos tipo-Gettier é o de que, em tais casos, os padrões são desviantes—não são os padrões epistêmicos relevantes que nós selecionaríamos e incorporaríamos em nossas vidas intelectuais com responsabilidade e em função da confiabilidade dos padrões. Em outras palavras, a sorte epistêmica não é um padrão confiável e, portanto, agentes responsáveis não a adotariam como padrão para serem conduzidos à verdade. Não obstante, a abordagem híbrida nos permite entender por que pelo menos alguns casos de conhecimento têm mais valor que a mera crença verdadeira. Esse fato ocorre em função de que, em alguns casos de conhecimento, aquele que conhece merece crédito epistêmico pela performance doxástica bem-sucedida.

Isso é, de modo geral, o que eu irei apresentar e defender em meu trabalho de conclusão de curso (TCC) daqui há dois dias (30/06), às 19h00min. Espero que essa proposta—embora ainda bastante embrionária, é preciso admitir—, seja, de fato, uma grande contribuição à epistemologia contemporânea, como eu penso que é.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

A Abordagem Híbrida do Conhecimento

Este texto é um reflexo do meu trabalho de conclusão de curso. É uma tentativa de expor de maneira sucinta e razoavelmente acessível o que nele é discutido, incluindo uma das minhas propostas elaboradas ao problema da natureza do conhecimento (bem como ao problema de Gettier).

1. Casos tipo-Gettier e o confiabilismo do agente de John Greco

A definição tripartite do conhecimento proposicional diz que S sabe que p se, e somente se:
  • S crê que p (condição atitudinal);
  • é o caso de que p (condição semântica); e
  • S está epistemicamente justificado a crer que p (condição epistêmica).

Em suma, de acordo com a definição tripartite, conhecimento é crença verdadeira justificada.

Desde Gettier (1963), no entanto, sabemos que existem casos de crença verdadeira justificada que não são casos de conhecimento. Esses casos ficaram conhecidos pelo nome de casos tipo-Gettier e, em comum, eles têm o fato de o sujeito S ter alcançado a verdade por mera sorte. Tome o já conhecido caso da ovelha de Chisholm:
A person takes there to be a sheep in the field and does so under conditions which are such that, when under those conditions a person takes there to be a sheep in the field, then it is evident for that person that there is a sheep in the field. The person, however, has mistaken a dog for a sheep and so what he sees is not a sheep at all. Nevertheless it happens that there is a sheep in another parto f the field. Hence, the proposition that there is a sheep in the field will be one that is both true and evidente and it will also be one that the person accepts. But the situation does not warrant our saying that the person knows that there is a sheep in the field. (Chisholm, 1989, p. 93)
Assumindo que 'crença verdadeira justificada' seja uma boa aproximação do que é o conhecimento proposicional, precisamos acrescer uma quarta condição à definição de conhecimento. Os casos tipo-Gettier sugerem que esta quarta condição seja uma condição de não-acidentalidade: conhecimento é crença não-acidentalmente verdadeira e justificada. Com efeito, a epistemologia contemporânea pós-Gettier é amplamente elaborada para acomodar intuições anti-sorte do conhecimento. Uma das teorias mais promissoras, neste sentido, é o confiabilismo do agente de John Greco, de acordo com o qual o conhecimento é uma espécie de sucesso alcançado através de nossas habilidades (Greco, 2010, p. 3). Em outras palavras, em casos de conhecimento, o sucesso de S em acreditar na verdade é atribuível às suas habilidades cognitivas. O foco nas habilidades cognitivas revela que Greco pretende defender uma abordagem teórica das virtudes para lidar com diversos problemas de epistemologia. Uma abordagem teórica das virtudes acerca da normatividade epistêmica e do conhecimento tenta explicar o conhecimento e a dimensão normativa do conhecimento em termos de excelências de nível pessoal. Essas excelências são entendidas como virtudes ou habilidades intelectuais. Pelo fato de habilidades serem disposições confiáveis de aquisição de crença, sua abordagem é uma versão das teorias confiabilistas. Pelo fato de habilidades serem disposições de nível pessoal, sua abordagem pode ser chamada de 'confiabilismo do agente' (Greco, 2010, p. 10).

Como dito anteriormente, o confiabilismo do agente de Greco entende que, em casos de conhecimento, o sucesso de S em acreditar na verdade é atribuível às suas habilidades cognitivas. Cabe a pergunta: como devemos entender a relação de atribuição estipulada entre as habilidades cognitivas do agente epistêmico e seu sucesso doxástico? A proposta original de Greco era a de interpretar esta relação em termos explanatórios: em casos de conhecimento, as habilidades cognitivas de S explicam por que S forma uma crença verdadeira (Greco, 2010, p. 71). Sua proposta mais recente (Greco 2012) não será discutida aqui, mas ela sugere que interpretemos a relação de atribuição em termos pragmáticos. De acordo com a proposta original de Greco, S sabe que p se, e somente se, S acredita na verdade com respeito a p porque a crença de S de que p é produzida por suas habilidades intelectuais.

A vantagem do confiabilismo do agente de Greco é que, ao estipular uma relação de atribuição entre as habilidades cognitivas de um agente epistêmico e seu sucesso em acreditar na verdade, Greco satisfaz a condição de não-acidentalidade do conhecimento proposicional, o que faz com que sua teoria não esteja sujeita a casos tipo-Gettier, além de oferecer um diagnóstico de tais casos: casos tipo-Gettier são casos em que o sucesso de S é atribuível a uma sorte, não ao exercício das habilidades cognitivas de S. A aparente falha em sua teoria é que ela não parece acomodar alguns casos genuínos de conhecimento em função de sua exigência de que as habilidades cognitivas de S desempenhem o papel mais importante para explicar por que S forma uma crença verdadeira em casos de conhecimento. Se Greco não se comprometer com essa exigência, afirmando apenas que as habilidades cognitivas desempenham um papel importante para explicar por que S forma uma crença verdadeira, então sua proposta é conduzida a um dilema. Dois contraexemplos serão apresentados no que se segue.


2. O caso de Morris

Jennifer Lackey (2004) nos pede para considerar Morris, uma pessoa que está na estação de trem de Chicago e precisando adquirir orientações de como chegar à Sears Tower. Ele olha à volta e, aleatoriamente, aborda o primeiro transeunte que ele vê. O transeunte que, por um acaso, reside em Chicago e conhece a cidade maravilhosamente bem, oferece a Morris direções impecáveis para chegar à Sears Tower. Lackey sugere, aparentemente de maneira acertada, que o que explica o fato de Morris tomar acertadamente as direções que o levarão à Sears Tower não tem nada de epistemicamente interessante com relação a ele (i.e., suas excelências de nível pessoal), mas com o transeunte que lhe ofereceu as informações de maneira detalhada e confiável. Mais especificamente, é a experiência do transeunte com a cidade, e o conhecimento que ele possui da cidade de Chicago, que explica por que Morris acaba por possuir uma crença verdadeira, ao invés de falsa. Sendo assim, é plausível afirmar que Morris adquiriu conhecimento através do transeunte, e não através de suas próprias habilidades. As habilidades de Morris certamente não são a parte mais importante para explicar por que Morris acredita na verdade.

Alguém poderia sugerir que “certo, as habilidades de Morris não são a parte mais importante para explicar por que Morris acredita na verdade, mas ainda assim são uma parte importante para explicar por que Morris acredita na verdade e, portanto, ainda há uma relação de atribuição entre as habilidades intelectuais de Morris e seu sucesso em acreditar na verdade.” No entanto, se interpretarmos a relação de atribuição neste sentido mais fraco, a proposta de Greco não dá conta de entender por que casos tipo-Gettier não são casos de conhecimento. Em tais casos, as habilidades de S são uma parte importante para explicar por que S tem sucesso em acreditar na verdade, mas nem por isso sujeitos gettierizados estariam de posse de conhecimento.

Estamos, assim, diante de um dilema: ou (a) nós entendemos a relação de atribuição de maneira forte, caso no qual nós não atribuiríamos conhecimento ao caso de Morris, ou (b) nós entendemos a relação de atribuição de maneira fraca, caso no qual nós falharíamos em explicar por que casos tipo-Gettier não são casos de conhecimento.


3. O caso de Sissi

Krist Vaesen (2011) nos pede para considerar um novo e melhorado scanner de bagagens do aeroporto (“SYSTEM2”) que, ao contrário do scanner antigo (“SYSTEM1”), produz, periodicamente, imagens falsas de bombas e outros itens perigosos, de modo a manter os operadores de alerta durante uma tarefa que, de outra forma, teria sido tediosa. Quando o operador percebe uma potencial ameaça, ele informa o sistema através de um clique na imagem. Se a imagem for falsa, uma mensagem de “Falso Alarme” aparece. Se nenhuma mensagem aparecer, o operador sabe que a ameaça é real. Esta melhoria simples para o sistema permite melhorar o desempenho dos operadores dramaticamente.
SISSICASE: Sissi has been a bagage inspector all her life. She used to work with an old-fashioned SYSTEM1, but since 9 / 11, the airport she is working for introduced a SYSTEM2 [...]. Currently Sissi is inspecting a piece of luggage which contains a bomb. She notices and forms a true belief regarding the contents of the suitcase. As such, the bomb is intercepted and a catastrophe prevented from happening. (Vaesen, 2011, p. 523)
Somos pedidos para supor que, usando o antigo SYSTEM1, Sissi não teria sido atenta e, assim, teria deixado uma bagagem com uma bomba dentro passar despercebida. De acordo com Vaesen, é correto dizer que a formação de uma crença verdadeira por parte de Sissi é atribuível à nova tecnologia, ao invés de ser atribuível às suas próprias habilidades. É claro que as habilidades intelectuais de Sissi não estão inteiramente ausentes no caso em questão. Da mesma forma, porém, as habilidades intelectuais de sujeitos gettierizados não estão ausentes em casos tipo-Gettier. Portanto, dizer que as habilidades de Sissi não estão ausentes não nos ajuda a entender melhor a natureza do conhecimento.

Novamente, estamos diante do dilema já apresentado: ou (a) nós entendemos a relação de atribuição de maneira forte, caso no qual nós falharíamos por não atribuir conhecimento a Sissi, ou (b) nós entendemos a relação de atribuição de maneira fraca, caso no qual nós falharíamos em explicar por que casos tipo-Gettier não são casos de conhecimento.


4. A abordagem híbrida do conhecimento

A abordagem que pretendo defender ainda é bastante embrionária. Fundamentalmente, nela pretendo acomodar duas vertentes da epistemologia das virtudes: o confiabilismo das virtudes e o responsabilismo das virtudes. Como eu pretendo fazer isso? Acomodando intuições confiabilistas e responsabilistas em uma única teoria do conhecimento, obviamente. A ideia fundamental é a de que a dimensão normativa do conhecimento (i.e., sua condição epistêmica) inclui dois componentes: um componente de sucesso confiável e um componente de motivação responsável. Estas ideias ficarão mais claras ao longo do texto.

A proposta que estou elaborando diz o seguinte: Em casos de conhecimento, o sucesso de S em acreditar na verdade é atribuível aos padrões que governam o estatuto normativo relevante para o conhecimento. Em outras palavras, em casos de conhecimento, os padrões que governam o estatuto normativo relevante para o conhecimento são a parte mais importante para explicar por que S forma uma crença verdadeira.

Cabe a pergunta: quais são os padrões que governam o status normativo relevante para o conhecimento? Para isto, retomo o epistemólogo John Greco. Em seu artigo "Testimonial Knowledge and the Flow of Information", Greco argumenta que existem ao menos dois tipos de atividades governadas pelo conceito de conhecimento. Em primeiro lugar, existiriam atividades relativas à produção de informação, ou seja, relativas à entrada de informação em uma comunidade epistêmica; em segundo lugar, existiriam aquelas atividades concernentes à distribuição de informação por toda a comunidade epistêmica, i.e., haveriam mecanismos para distribuir a informação que já está presente no sistema social. Os exemplos que ele toma para o primeiro caso são relativos à observação empírica e introspecção; para o segundo caso, relativos ao testemunho:
[E]mpirical observation serves to produce information about physical objects in our environment, and introspection serves to produce information about accessible mental states. [T]eaching in the classroom, testifying in court, and reporting in the boardroom all serve the distribution function. (Greco, forthcoming, p. 18)
Para Greco, as normas que governam atividades relativas à produção de informação desempenham uma função de "porteiro", por assim dizer: elas exercem o controle de qualidade destas informações de tal modo a admitir apenas informações de alta qualidade no sistema social. Por outro lado, as normas que governam as atividades relativas à distribuição de informação respondem a uma função de distribuição – elas permitem que as informações de alta qualidade que já estão dentro do sistema social sejam distribuídas tal como necessitadas pela comunidade epistêmica. Assim, é razoável esperar que as normas que governam as atividades relativas à produção de informação sejam diferentes das normas que governam as atividades relativas à distribuição de informação.

Seguindo Greco, minha sugestão é a de que os padrões que governam a geração do estatuto normativo relevante para o conhecimento são diferentes dos padrões que governam a transmissão do estatuto normativo relevante para o conhecimento. Em casos de geração, os padrões em questão são relativos ao próprio agente epistêmico (o que não exclui a contribuição do ambiente ou das circunstâncias), i.e., os padrões são propriamente as habilidades cognitivas do agente epistêmico. Em casos de transmissão, por outro lado, os padrões em questão podem ser ou relativos aos artefatos epistêmicos operados pelo sujeito (tal como no caso de Sissi e outros casos de aquisição de crença envolvendo cognição estendida), ou relativos à comunidade epistêmica com a qual o sujeito interage (tal como no caso de Morris e outros casos de aquisição de crença por testemunho). Estes padrões, por sua vez, são selecionados e incorporados em uma comunidade em função de seu sucesso confiável e motivação responsável. Trocando em miúdos, em função de desejarmos a verdade e em função de estes padrões serem conducentes à verdade, não é um acaso que selecionemos e incorporemos estes padrões em nossas vidas intelectuais.

Chamo a presente proposta de ‘abordagem híbrida’ precisamente porque (1) ela satisfaz tanto intuições confiabilistas quanto responsabilistas da epistemologia das virtudes e porque (2) o que se segue dela é uma maneira híbrida de abordar o conhecimento, onde ora devemos avaliar o agente epistêmico, ora o artefato epistêmico operado pelo agente, ora os informantes ou as fontes de informação que fazem as informações circularem em uma comunidade epistêmica.

Mas quais são as vantagens teóricas da presente abordagem comparada ao confiabilismo do agente? Argumento que são, pelo menos, três vantagens:
  1. Ela consegue acomodar, de maneira mais óbvia que o confiabilismo do agente, os casos de Morris e Sissi como casos genuínos de conhecimento;
  2. Ela evita casos tipo-Gettier e oferece um diagnóstico plausível de tais casos: casos tipo-Gettier, como casos em que nos direcionamos à verdade por acidente ou sorte, são casos em que os padrões são desviantes: não são, por assim dizer, os padrões que, selecionados e incorporados por seu sucesso confiável e motivação responsável, nos conduzem à verdade;
  3. Ela oferece uma explicação acerca do valor do conhecimento: alguns casos de conhecimento são estimados em si mesmo (tendo mais valor que a mera crença verdadeira) porque, em tais casos, o sujeito merece crédito epistêmico pelo seu sucesso em acreditar na verdade; em outros casos, ocorre que o sujeito não merece crédito epistêmico (ou, ao menos, não merece todo o crédito epistêmico) pelo seu sucesso em acreditar na verdade, ou porque seu sucesso é atribuível ao bom funcionamento de um artefato epistêmico ou porque seu sucesso é atribuível à sinceridade e colaboração de uma pessoa que lhe está transmitindo uma informação. Assim, enquanto alguns casos de conhecimento envolvem um sucesso doxástico creditável ao agente epistêmico (casos em que o conhecimento tem valor final), outros casos de conhecimento envolvem um sucesso doxástico creditável a um artefato epistêmico ou ao informante de uma comunidade epistêmica (casos em que o conhecimento tem um valor meramente instrumental).

A presente abordagem também suscita questões acerca dos padrões que governam o fluxo de informação em uma comunidade epistêmica, às quais não serão esclarecidas neste texto. Ela suscita, além do mais, questionamentos de epistemologia aplicada: afinal, se temos a necessidade de selecionar e incorporar padrões de excelência em nossa comunidade epistêmica, qual é a função epistemológica das escolas e do jornalismo, p.ex.?

Uma outra questão que me preocupa é saber se haveria espaço para considerar, para além da geração e da transmissão, a preservação do estatuto normativo relevante para o conhecimento. Em caso afirmativo, os exemplos mais óbvios de tais casos seriam casos de conhecimento por memória. Mas não poderia, a memória, gerar justificação epistêmica, para além de preservá-la? É o que argumenta, p.ex., Jordi Fernández, em seu artigo "Epistemic Generation in Memory", mas estas são questões para as quais eu ainda não tenho uma posição.


REFERÊNCIAS

CHISHOLM, R. Theory of Knowledge, 3rd edn. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1989. 112p.

CRAIG, E. Knowledge and the State of Nature. Oxford: Clarendon Press, 1990. 169p.

GETTIER, E. “É o conhecimento crença verdadeira justificada?”. Disponível em: <http://www.ufrnet.br/~tl/otherauthorsworks/gettierehoconhecimentocrencaverdadeiraejustificada.pdf>. Acesso em: 1 de junho de 2015.

GRECO, J. Achieving Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. 205p.

____. “A (Different) Virtue Epistemology”. In: Philosophy and Phenomenological Research, 85, 1 (2012): 1-26.

____. “Testimonial Knowledge and the Flow of Information”. In: Greco e Henderson (Eds.), Epistemic Evaluation. Oxford: Oxford University Press, forthcoming. Disponível em: https://docs.google.com/file/d/0B5a34susVZZhcTBrWDVoVVB3NVk/edit?pli=1.

GRICE, P. H. “Lógica e conversação”. In: Dascal, M. (org.). Fundamentos metodológicos da linguística IV: pragmática – problemas, críticas. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, 1982 [1967].

LACKEY, J. Review of Michael DePaul and Linda Zagzebski, eds., Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology, Notre Dame Philosophical Reviews (2004), disponível em: http://ndpr.nd.edu/news/23828/?id=1462.

VAESEN, K. “Knowledge without credit, exhibit 4: extended cognition”. In: Synthese, 181, (2011): 515-529.

____. “Virtue epistemology and extended cognition: a reply to Kelp and Greco”. In: Erkenntnis, 78, (2013): 963-970.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

1

Não te iluda, ó menino, com promessa,
que o Amor é categórico – a dispensa!
Lembranças te trarão saudade imensa,
mas quem, do amor, desvela seus mistérios,
                                  recusa a pressa!

Também não queira instar prônubo ânimo
a quem não quer calar a juventude.
Quem, do amor, extrair a plenitude
terá viço maior e a longo prazo
                                  será magnânimo.

Outrora, bom menino, a teimosia
insulou, neste peito, amor descrido.
E, tão logo acabou, fui convencido
de que melhor ficava co as lembranças
                                  que co a apatia.

Agora vá, menino! E, embora manco,
procura, neste amor, rejubilar-te.
Viver de amor requer invento e arte;
e, por Deus!, que aptidão não falte, pois
                                  o Amor é franco!