quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Perspectiva da vida comum

Os anos de 2015 e 2016 foram especiais no meu desenvolvimento como pesquisador em filosofia, em especial no campo da epistemologia, que eu defino como o campo de pesquisa filosófica dedicado ao estudo dos aspectos intelectuais de nossas vidas sob um ponto de vista valorativo. Isto porque da metade de 2015 até metade de 2016—um período de um ano, portanto—, eu acabei por desenvolver diversas ideias ao mesmo tempo em que desenvolvia as ideias que comporiam minha Dissertação. Dentre essas ideias, as duas principais foram o desenvolvimento de uma teoria do conhecimento—o confiabilismo dos padrões—e o desenvolvimento de uma metodologia filosófica—a perspectiva da vida comum. Nesta publicação, proponho-me a descrever esta última e a esclarecer as influências que me levaram ao desenvolvimento da mesma.

BREVE INTRODUÇÃO À PERSPECTIVA DA VIDA COMUM

Em anos recentes (Baker 2007; Mandoki 2007; Saito 2008; Greco 2010; Donaldson e Kymlicka 2011; Wettstein 2012; Silva Filho 2013; Schechtman 2014; Thunder 2014; Henderson e Greco 2015), temos assistido a uma virada metodológica em diversos ramos da filosofia com um ponto aparentemente convergente: o olhar atento ao nosso envolvimento ordinário com o mundo. A esta virada metodológica dou o nome de perspectiva da vida comum e sua aposta principal reside na ideia de que “o ponto de partida para a filosofia, e para o qual a filosofia deve fazer justiça, é o nosso envolvimento ordinário, cotidiano com o mundo” (MALPAS, 2005, p. 51 apud SILVA FILHO, 2013, p. 60).

DUAS VARIEDADES DE PERSPECTIVA DA VIDA COMUM

A afirmação de que o ponto de partida para a filosofia é o nosso envolvimento cotidiano com o mundo pode sugerir duas leituras distintas, uma “robusta” e outra “moderada”.

Perspectiva robusta da vida comum: Para todo problema filosófico, o olhar atento à vida comum desempenha um papel central na solução (ou dissolução) do problema.

Perspectiva moderada da vida comum: Para ao menos alguns problemas filosóficos, o olhar atento à vida comum desempenha um papel central na solução (ou dissolução) desses problemas.

CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DA PERSPECTIVA DA VIDA COMUM

Algumas reivindicações metodológicas específicas:
  • presta atenção na maneira como o mundo se mostra a nós diariamente—as aparências—se quiseres proceder numa investigação metafísica;
  • presta atenção nas entidades com as quais interagimos cotidianamente se quiseres proceder numa investigação ontológica;
  • presta atenção na maneira como as avaliações epistêmicas operam em nossas atividades ordinárias se quiseres proceder numa investigação epistemológica;
  • presta atenção nas matrizes estéticas das interações cotidianas se quiseres proceder numa investigação estética;
  • presta atenção nas complexidades éticas das interações cotidianas se quiseres proceder numa investigação ética;
  • presta atenção às situações concretas e ordinárias relacionadas às nossas vidas sociais e comunidades políticas se quiseres proceder numa investigação filosófico-política; etc.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA PERSPECTIVA DA VIDA COMUM

Dentre as características gerais da perspectiva da vida comum, menciono quatro delas:
  1. O privilégio da primeira pessoa do plural;
  2. O privilégio do ‘aqui’ e do ‘agora’;
  3. A atitude metodológica in medio rerum;
  4. O método empírico-ordinário.
As duas primeiras respondem à questão: o método avançado pela perspectiva da vida comum privilegia uma perspectiva pessoal, temporal e local específicas ou ele é neutro com respeito a tudo isso? A resposta é de que a perspectiva da vida comum concede privilégio metodológico à primeira pessoa do plural—ao ‘nós’—, ao ‘aqui’ e ao ‘agora’, uma vez que estes elementos parecem circunscrever o conceito de vida comum.

A terceira característica geral responde à questão: o método avançado pela perspectiva da vida comum pretende um ponto de partida ideal ou tem início “no meio das coisas”? A resposta é de que a perspectiva da vida comum é uma atitude metodológica in medio rerum, i.e., que tem início “no meio das coisas”. Esta característica, por sua vez, se desdobra em três sentidos distintos, embora entrelaçados. Primeiro, há o sentido semântico de se ter início no meio das coisas, que corresponde à ideia de que toda pesquisa filosófica deve ter início com a linguagem de que já dispomos. Segundo, há o sentido epistemológico de se ter início no meio das coisas, que corresponde ao fato de que não é possível iniciar uma pesquisa filosófica sem qualquer pressuposto—o melhor que nós podemos fazer é estarmos conscientes de nossos pressupostos. Terceiro, há o sentido ontológico de se ter início no meio das coisas, o qual corresponde à ideia de que os objetos de interesse inicial de nossa pesquisa devem ser os entes que povoam o “mundo cotidiano”—pessoas, organismos vivos, artefatos etc. A meu ver, este último sentido tem como implicação, na epistemologia, a ideia de que os objetos iniciais de avaliação epistêmica não são crenças ou opiniões, mas agentes, artefatos e comunidades epistêmicas—algo que está em concordância tanto com a teoria do conhecimento desenvolvida por mim quanto com a epistemologia das virtudes, mas numa medida que, neste último caso, creio ser mais limitada.

Penso que há paralelos interessantes, que não explorarei aqui, entre estes três sentidos com respeito à filosofia da linguagem ordinária—compare o sentido semântico—, à filosofia do senso comum—compare o sentido epistemológico—e à fenomenologia hermenêutica—compare o sentido ontológico.

Por fim, a quarta característica geral do método avançado pela perspectiva da vida comum responde à questão: trata-se de um método a priori ou a posteriori? A resposta é de que se trata de um método que não é domesticável nestes conceitos. Uma vez que ele prescreve uma atenção especial ao nosso envolvimento ordinário com o mundo, poder-se-ia arguir que ele se caracteriza como um método que é de certo modo empírico. Entretanto, nada impede que tal atenção possa ser exercitada no conforto de nossas poltronas, o que ensejaria a ideia de que se trata de um método a priori.

Para se ter maior clareza no assunto, é preciso notar que o sentido de ‘empírico’ relevante para o presente método pode ser qualificado como ordinário. Em poucas palavras, o método empírico-ordinário avançado pela perspectiva da vida comum baseia-se naquilo que é (ou não é) confirmado pelas nossas observações ordinárias.

OBJEÇÕES

A meu ver, uma das principais objeções quanto à perspectiva da vida comum poderia advir da opacidade do conceito de vida comum. De acordo com esta crítica, uma vez operando como um termo de arte no discurso filosófico, o conceito de vida comum precisa ter seus contornos claramente definidos. Do contrário, o uso deste conceito estaria sujeito a obscuridades que tenderiam a favorecer vieses de confirmação e, assim, o método avançado pela perspectiva da vida comum não satisfaria condições de transparência exigidas pela metodologia filosófica—i.e., não seria replicável com rigor e transparência por diferentes pessoas em diferentes contextos. O argumento pode ser construído tal como se segue:
P1. Se um método filosófico é apropriado, então ele satisfaz condições de transparência.
P2. A perspectiva da vida comum não satisfaz condições de transparência.
Logo,
C1. A perspectiva da vida comum não é um método filosófico apropriado (modus tollens, P1, P2).
Há quem possa querer rejeitar P1 de saída. Eu, no entanto, adotarei uma estratégia contra-argumentativa diferente. Minha estratégia será apresentar uma análise conceitual de ‘vida comum’ para rejeitar P2, ao invés de P1. Tal análise conceitual está presente em uma resenha feita por mim da obra Sem Ideias Claras e Distintas, do filósofo brasileiro Waldomiro Silva Filho, o qual recorre de maneira constante ao conceito de vida comum com um propósito claramente metodológico. Sem mais rodeios,
(VC) S vive uma vida comum se, e somente se, S envolve-se com o mundo de uma maneira ordinária; i.e., S orienta-se no mundo de maneira pragmática através de ferramentas familiares ao seu ambiente físico e social.
Há três elementos que constituem a presente análise conceitual de ‘vida comum’ e que precisam ser esclarecidos. São eles: (a) nossa “orientação pragmática” no mundo; (b) nossa familiaridade com respeito às ferramentas de que dispomos e usamos; e (c) o ambiente físico e social no qual estamos inseridos.

Em primeiro lugar, nosso envolvimento ordinário com o mundo caracteriza-se por uma “orientação pragmática”, i.e., é uma espécie de envolvimento com o mundo orientado à resolução de problemas práticos. Assim, por exemplo, nos direcionamos a algum líquido (e.g., água) que aparentemente vá saciar nossa sede—a solução—quando estamos com sede—o problema.

Em segundo lugar, o estar orientado à resolução de problemas práticos exige ferramentas—os meios—para que os problemas sejam solucionados—o fim. Por exemplo, se estou com sede e a água pode saciá-la, eu poderei usar ferramentas artefatuais (e.g., copo, torneira etc.) para obter a solução do meu problema. Nosso envolvimento ordinário com o mundo é caracterizado pela familiaridade que possuímos com as ferramentas que fazemos uso para a solução de nossos problemas práticos. Em outras palavras, nosso envolvimento ordinário com o mundo se caracteriza por uma resolução de problemas práticos levada a cabo por meio de ferramentas com as quais estamos familiarizados. Estas ferramentas não precisam ser necessariamente artefatuais, podendo ser, também, ferramentas conceituais e sociais (e.g., leis, redes sociais etc.).

O terceiro ponto para o qual gostaria de chamar a atenção é o fato de que a familiaridade com que estamos conectados às ferramentas que fazemos uso na resolução de nossos problemas práticos se deve graças ao ambiente físico e social em que estamos inseridos. Este terceiro elemento é fundamental para o reconhecimento de que diferentes ambientes físicos e sociais podem produzir diferentes estilos de vida comum. Por exemplo, a vida comum de uma pessoa na cidade de São Paulo não é o mesmo estilo de vida comum de um inuíte, embora suas vidas sejam constituídas pelos mesmos três elementos aqui mencionados.

Algumas outras objeções possíveis podem advir de metodologias que prescrevam neutralidade quanto a uma perspectiva pessoal, temporal ou local específicas, ou mesmo daquelas que prescrevem o privilégio da primeira pessoa do singular. Outras, ainda, podem advir de metodologias que prescrevam um método filosófico estritamente a priori, ou de metodologias que não reconheçam a relevância epistemológica das observações ordinárias na pesquisa filosófica, ou mesmo de metodologias que prescrevam um “ponto de partida ideal” na investigação filosófica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentei, aqui, o método filosófico que convencionei chamar de perspectiva da vida comum e que é consistente com alguns trabalhos de filósofas e filósofos aqui mencionados. De acordo com o que penso, tal metodologia é endossável em razão da fertilidade que ela vem demonstrando na filosofia contemporânea (Baker 2007; Mandoki 2007; Saito 2008; Greco 2010; Donaldson e Kymlicka 2011; Wettstein 2012; Silva Filho 2013; Schechtman 2014; Thunder 2014; Henderson e Greco 2015), por ser mais apropriada aos assuntos humanos, onde reinam os acidentes e contingências (Thunder 2014) e por ser uma atitude metodológica que evita estratégias extravagantes (e.g., mundos possíveis, terceiro reino etc.). Ademais, não explorarei aqui a ideia que ora trago, mas penso que o método avançado pela perspectiva da vida comum possui uma aplicação especial no contexto da antropologia filosófica.

REFERÊNCIAS

BAKER, L. R. The Metaphysics of Everyday Life: An Essay in Practical Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 253p.

DONALDSON, S.; KYMLICKA, W. Zoopolis: A Political Theory of Animal Rights. Oxford: Oxford University Press, 2011. 329p.

GRECO, J. Achieving Knowledge: A Virtue-Theoretic Account of Epistemic Normativity. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. 205p.

HENDERSON, D. K.; GRECO, J. Epistemic Evaluation: Purposeful Epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2015. 293p.

MANDOKI, K. Everyday Aesthetics: Prosaics, the Play of Culture and Social Identities. Mexico: Ashgate, 2007. 327p.

SAITO, Y. Everyday Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 2008. 273p.

SCHECHTMAN, M. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life. Oxford: Oxford University Press, 2014. 214p.

SILVA FILHO, W. J. Sem Ideias Claras e Distintas. Salvador: EDUFBA, 2013. 127p.

THUNDER, D. Citizenship and the Pursuit of the Worthy Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. 210p.

WETTSTEIN, H. The Significance of Religious Experience. Oxford: Oxford University Press, 2012. 223p.

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