quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Confiabilismo dos padrões: uma abordagem de múltiplos níveis da normatividade epistêmica

Os anos de 2015 e 2016 foram especiais no meu desenvolvimento como pesquisador em filosofia, em especial no campo da epistemologia, que eu defino como o campo de pesquisa filosófica dedicado ao estudo dos aspectos intelectuais de nossas vidas sob um ponto de vista valorativo. Isto porque da metade de 2015 até metade de 2016—um período de um ano, portanto—, eu acabei por desenvolver diversas ideias ao mesmo tempo em que desenvolvia as ideias que comporiam minha Dissertação. Dentre essas ideias, as duas principais foram o desenvolvimento de uma teoria do conhecimento—o confiabilismo dos padrões—e o desenvolvimento de uma metodologia filosófica—a perspectiva da vida comum. Nesta publicação, proponho-me a descrever aquela primeira e a esclarecer as influências que me levaram ao desenvolvimento da mesma.

O ESQUEMA GERAL DO CONHECIMENTO PROPOSICIONAL

Grosso modo, a maior parte dos epistemólogos sugere que há ao menos quatro condições individualmente necessárias—e, talvez, conjuntamente suficientes—para se ter conhecimento de proposições—a espécie de conhecimento que falantes competentes da língua portuguesa caracteristicamente atribuem uns aos outros com frases na forma “S sabe que p”, onde “S” é um sujeito qualquer e “p” é uma proposição qualquer. Costumo nomear estas quatro condições da seguinte maneira: (a) condição atitudinal; (b) condição semântica; (c) condição epistêmica; e (d) condição antissorte.

Primeiro, para se ter conhecimento de tipo “proposicional” é preciso satisfazer (a), i.e., é necessário que o sujeito creia que algo é (ou não é) o caso. Segundo, para se ter tal tipo de conhecimento é preciso satisfazer (b), i.e., é necessário que aquilo em que o sujeito crê seja o caso. Terceiro, para se ter conhecimento de tal tipo é preciso satisfazer (c), i.e., é necessário que a crença do sujeito tenha um estatuto epistêmico positivo para que ela seja “candidata a conhecimento”. Por fim, quanto à (d), qualquer tentativa de expressá-la positivamente torna a menção às demais condições ociosas, uma vez que é esta condição que estabelece a relação apropriada entre as satisfações das outras três condições aqui descritas. Tal relação pode ser apresentada em termos de uma relação de atribuição, onde, em casos de conhecimento proposicional, a satisfação das condições atitudinal e semântica é atribuível à satisfação da condição epistêmica. De fato, temos aqui uma tese em epistemologia bastante aceita, mas num nível de abstração que dá margem às discordâncias. Isto ocorre porque, como defenderei aqui, tanto a teoria do conhecimento que desenvolvi nesse período de um ano, quanto uma variedade específica de epistemologia das virtudes concordariam nos termos gerais em que essa tese foi aqui colocada, mas há diferenças significativas entre a teoria do conhecimento que desenvolvi durante esse período e esta variedade específica de epistemologia das virtudes, as quais tentarei apresentar adiante.

Antes de prosseguirmos, deixe-me esclarecer os nomes dados por mim a cada uma destas condições individualmente necessárias do conhecimento proposicional. O nome de (a) advém do fato de que crenças são classificadas como uma espécie de atitude proposicional. O nome de (b) advém do fato de que quando o conteúdo de uma crença é o caso, atribuímos a ela o valor semântico da verdade. O nome de (c) advém do fato de que crenças ou opiniões candidatas a conhecimento são crenças que satisfazem um estatuto epistêmico positivo. Por fim, o nome de (d) advém do fato de que casos de conhecimento não envolvem casos em que (a), (b) e (c) são satisfeitas, mas onde (a) e (b) são obtidas por mera sorte epistêmica.

ABORDAGEM TEÓRICA DAS VIRTUDES E NORMATIVIDADE EPISTÊMICA

Neste momento, quero apresentar uma variedade de epistemologia das virtudes. Como dito acima, esta variedade endossa, junto à teoria do conhecimento que vim desenvolvendo, o esquema geral do conhecimento de proposições que apresentei acima. A diferença mora nos detalhes. Mais precisamente, há diferenças cruciais na maneira como cada uma destas teorias compreendem a condição epistêmica do conhecimento. Estas diferenças, no caso da epistemologia das virtudes que quero apresentar, se desdobra num dilema interessantíssimo que, por sua vez, motiva toda a teoria do conhecimento que vim desenvolvendo nesse período—o confiabilismo dos padrões—e a abordagem que desenvolvi a respeito da normatividade epistêmica.

A variedade de epistemologia das virtudes a que faço menção aqui pode ser descrita como uma epistemologia “conservadora” e confiabilista das virtudes expressa na sua forma robusta. Explico. A epistemologia das virtudes é um programa de pesquisa em epistemologia que possui dois tipos de ramificações. A primeira delas diz respeito às virtudes intelectuais que são o foco do(a) pesquisador(a) em questão. Um(a) epistemólogo(a) das virtudes que tenha, como foco, as virtudes intelectuais entendidas como faculdades cognitivas—as modalidades sensoriais, a memória, a razão etc.—, é um(a) teórico(a) associado(a) à ramificação confiabilista das virtudes. Já onde o foco são as virtudes intelectuais entendidas como traços de caráter intelectual—coragem intelectual, curiosidade, mentalidade arejada etc.—, chama-se de ramificação responsabilista das virtudes.

A segunda destas ramificações diz respeito aos problemas epistemológicos que são o foco do(a) pesquisador(a). Um(a) epistemólogo(a) das virtudes que tenha, como foco, problemas relacionados diretamente ao problema da natureza do conhecimento ou aos desafios do ceticismo epistemológico—i.e., onde seu propósito é explicar o que é o conhecimento e como ele é possível (projeto da explicação), ou reivindicar, diante do cético, que nós temos conhecimento (projeto da reivindicação)—chamamos de epistemologia conservadora das virtudes. Onde, porém, o foco está em problemas relacionados ao aperfeiçoamento de nossa situação cognitiva ou de nosso intelecto (projeto do aperfeiçoamento), chamamos de epistemologia autonomista das virtudes.

Estas duas ramificações admitem combinações e articulações diversas, podendo ser expressas de maneira “robusta” e “moderada”. O ponto-chave para compreender a variedade para a qual quero chamar a atenção aqui é que se trata de uma proposta cujo foco são as virtudes intelectuais entendidas como faculdades cognitivas e os problemas epistemológicos diretamente relacionados ao problema da natureza do conhecimento. Daí se tratar de uma epistemologia “conservadora” e confiabilista das virtudes. Além do mais, trata-se de uma variante robusta da epistemologia “conservadora” e confiabilista das virtudes porque entende que o conceito de virtude intelectual desempenha um papel central e fundamental na análise do conceito de conhecimento. Mais precisamente, tal variedade de epistemologia das virtudes entende que a condição epistêmica do conhecimento deve ser entendida exclusivamente em termos de excelências de nível pessoal—as virtudes intelectuais. Assim, temos uma proposta para compreender de maneira mais específica a ideia geral de que, em casos de conhecimento, a satisfação das condições atitudinal e semântica é atribuível à satisfação da condição epistêmica. A ideia, de acordo com esta variedade de epistemologia das virtudes, é a de que
(EV) Em casos de conhecimento, o sucesso de uma pessoa em acreditar na verdade é atribuível ao exercício de suas virtudes intelectuais.
É precisamente aqui que a teoria do conhecimento que vim desenvolvendo apresenta divergências significativas com respeito a esta variedade de epistemologia das virtudes. Porém, antes de apresentar os motivos destas divergências, deixe-me explicitar as diferentes maneiras de que dispomos na literatura para interpretar a relação de atribuição estipulada entre a satisfação da condição epistêmica e a satisfação das condições atitudinal e semântica do conhecimento.

RELAÇÃO DE ATRIBUIÇÃO: UM CONCEITO QUE MERECE ESCLARECIMENTOS

O conceito de relação de atribuição, utilizado aqui para poder expressar positivamente a condição antissorte do conhecimento, é um conceito cujo sentido correto é disputável. O epistemólogo John Greco (2012) apresenta cinco formulações distintas deste conceito, de acordo com as quais
  • (1) O conceito de relação de atribuição é um conceito primitivo;
  • (2) O conceito de relação de atribuição’ é uma espécie de relação de fundamentação metafísica;
  • (3) O conceito de relação de atribuição’ deve ser interpretado em termos explanatórios;
  • (4) O conceito de relação de atribuição’ deve ser interpretado em termos epistêmicos;
  • (5) O conceito de relação de atribuição’ deve ser interpretado em termos pragmáticos.
Minha aposta pessoal é no item (3), de acordo com a qual devemos entender o conceito de relação de atribuição’ em termos explanatórios. Isto implica em ler (EV) como uma tese segundo a qual, em casos de conhecimento, o exercício das virtudes intelectuais de uma pessoa explica por que essa pessoa obtém sucesso em acreditar na verdade. Mas essa leitura ainda dá margem a duas outras interpretações: em casos de conhecimento, (i) o exercício das virtudes intelectuais de uma pessoa é a parte mais importante para explicar por que essa pessoa obtém sucesso em acreditar na verdade ou (ii) o exercício das virtudes intelectuais de uma pessoa é uma parte importante para explicar por que essa pessoa obtém sucesso em acreditar na verdade? Chamemos (i) de versão robusta do sentido explanatório do conceito de relação de atribuição’ e (ii) de versão moderada do sentido explanatório do conceito de relação de atribuição’. É aqui que surge o dilema para a variedade de epistemologia das virtudes com que estamos lidando.

O DILEMA DA EPISTEMOLOGIA DAS VIRTUDES RESUMIDO

Jennifer Lackey (2009) e Krist Vaesen (2011) sugeriram, de maneira independente, dois casos dilemáticos à presente variedade de epistemologia das virtudes. Grosso modo, o que estes pesquisadores mostraram é que (EV) não é capaz de acomodar alguns casos genuínos de conhecimento sem que comprometa sua solução inicial ao problema de Gettier. Isto ocorre porque (i) não acomoda casos genuínos de conhecimento por testemunho e casos genuínos de conhecimento via uso de instrumentos e (ii) enfraquece (EV) de tal forma que esta teoria do conhecimento não evitaria casos tipo-Gettier, levando-nos a diagnosticar casos tipo-Gettier como casos genuínos de conhecimento.

A SOLUÇÃO PASSA POR UMA ABORDAGEM DE MÚLTIPLOS NÍVEIS

A meu ver, a solução não reside em interpretar o conceito de relação de atribuição’ em termos pragmáticos, como propõe Greco (2012), mas de modificar o nosso entendimento acerca da condição epistêmica do conhecimento. Tendo em vista acomodar os casos de conhecimento apresentados por Lackey (2009) e Vaesen (2011), minha proposta diz que devemos parar de insistir na ideia de que a condição epistêmica do conhecimento deve ser entendida exclusivamente em termos de excelências de nível pessoal. Dito de maneira mais positiva, minha proposta diz que devemos entender a condição epistêmica do conhecimento numa abordagem que tenha, como foco, múltiplos níveis de excelência. Trata-se, com efeito, de uma abordagem de múltiplos níveis da normatividade epistêmica. Nesta abordagem, há espaço tanto para excelências de nível pessoal—e.g., raciocínio cuidadoso—quanto para excelências de nível interpessoal—e.g., práticas conversacionais cooperativas—e subpessoal—e.g., bom funcionamento de um termômetro. Uma vez que o conceito de virtude intelectual não é amplo o suficiente para acomodar tais níveis de excelência, eu desenvolvi um conceito que penso acomodar de maneira apropriada cada um destes níveis, a saber, o conceito de padrão epistêmico. Fundamentalmente, um padrão epistêmico é uma disposição estável conducente à verdade. Com efeito, a teoria do conhecimento resultante desta visão é uma forma de confiabilismo, o qual chamo de confiabilismo dos padrões. A diferença desta variedade de confiabilismo para suas concorrentes focadas nas virtudes intelectuais é que tais disposições estáveis não precisam ser necessariamente disposições estáveis de nível pessoal, permitindo-se que sejam disposições estáveis de nível interpessoal ou subpessoal—o que, a meu ver, acomoda de maneira mais intuitiva alguns casos de conhecimento por testemunho e via uso de instrumentos.

CONFIABILISMO DOS PADRÕES

Retomemos a tese geral que apresentei no início do texto para, em seguida, compreendermos as diferenças entre o confiabilismo dos padrões e a variedade de epistemologia das virtudes aqui apresentada. A tese era a de que
(Esquema-Kp) Em casos de conhecimento, a satisfação das condições atitudinal e semântica é atribuível à satisfação da condição epistêmica.
Tendo o confiabilismo dos padrões em vista, podemos reformular o (Esquema-Kp) tal como se segue
(CP1) Em casos de conhecimento, o sucesso de uma pessoa em acreditar na verdade é atribuível aos padrões epistêmicos (relevantes).
Tendo em vista que faço a opção por interpretar o conceito de relação de atribuição’ em termos explanatórios, temos que
(CP2) Em casos de conhecimento, os padrões epistêmicos (relevantes) explicam por que a pessoa obtém sucesso em acreditar na verdade.
Por fim, tendo em vista que faço a opção pela versão robusta do sentido explanatório do conceito de relação de atribuição’, em especial para evitar casos tipo-Gettier, o resultado final do confiabilismo dos padrões pode ser expresso tal como se segue
(CP3) Em casos de conhecimento, os padrões epistêmicos (relevantes) são a parte mais importante para explicar por que a pessoa obtém sucesso em acreditar na verdade.
Eis, assim, a descrição mais precisa da teoria do conhecimento que vim desenvolvendo e da motivação para fazê-lo.

ORIENTAÇÕES FUTURAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para terminar, gostaria de comentar dois aspectos que, penso, são relevantes de serem levados a cabo no desenvolvimento futuro desta teoria. Em primeiro lugar, é preciso ter clareza sobre se padrões epistêmicos como a memória vívida ou a percepção apropriadamente discriminativa são padrões epistêmicos de nível pessoal—como muitos epistemólogos das virtudes parecem tratá-los—ou se se tratam de padrões epistêmicos de nível subpessoal. Em segundo lugar, creio que seria interessantíssimo explorar o confiabilismo dos padrões não apenas como uma resposta ao problema da natureza do conhecimento e, portanto, como uma proposta inserida no projeto epistemológico da explicação—o qual visa explicar o que é o conhecimento e como ele é possível—, mas também explorá-lo como uma proposta inserida no projeto epistemológico do aperfeiçoamento—o qual visa aperfeiçoar nossa situação cognitiva ou nosso intelecto—, em especial no que concerne à questão “como podemos otimizar o sucesso cognitivo de nossas crenças ou opiniões?” Deste modo, o confiabilismo dos padrões ofereceria orientações sobre como aperfeiçoar o nosso desempenho doxástico.

REFERÊNCIAS

GRECO, J. Achieving Knowledge: A Virtue-Theoretic Account of Epistemic Normativity. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. 205p.

____. “A (Different) Virtue Epistemology”. Philosophy and Phenomenological Research, 85, (2012): 1-26.

LACKEY, J. “Knowledge and Credit”.  Philosophical Studies, 142, (2009): 27-42.

VAESEN, K. “Knowledge without credit, exhibit 4: extended cognition”. Synthese, 181, (2011): 515-29.

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